segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O lado bom da vida

Por: Fabiana Ratti, psicanalista 

Depois de um pouco de política, após algumas manifestações que pararam o Brasil, voltamos aqui para a psicanálise. O Lado bom da vida (2012) de David O. Russell é um prato cheio para a discussão. O filme é realmente bom, com excelentes interpretações de Tiffany (Jennifer Lawrence), de Pat Solatano (Bradley Cooper) e dos pais Robert de Niro e Jaki Weaver. Estão todos ótimos.

 Pat Solatano é um dos casos psiquiátricos típicos. Com um pensamento desconexo, destrói e arruma confusão com o quem está a sua volta. Perde a noção de ´realidade´, se é dia ou noite, fala coisas desbaratadas sem medir as consequências. Pat chega a ser internado em Sanatório pois perdeu as capacidades de trabalho, a esposa e a casa. A mãe tira-o da internação mas Pat é rebelde. Não toma remédio, trata com descaso sua doença, tenta nega-la, como muitos em sua condição. Tem a ideia fixa em voltar com a esposa, mas não se esforça em retomar suas atividades.

O filme é bem interessante. Mostra como a família tem dificuldade em saber como lidar com um filho que passa por problemas psiquiátricos. Marca o quanto os pais querem dar amor, como ficam tristes e desesperançosos, angustiados por uma solução que eles duvidam que algum dia chegue. Também mostra as ‘esquisitices normais’ de uma família e a dificuldade em saber o que liberar ou exigir de um filho nessas condições. 

Um dia, Pat é apresentado a Tiffany, uma moça que também tem seus problemas. Porém, Tiffany é insistente. Aproxima-se de Pat e usa todos os recursos para que ele participe de um concurso de dança. Com o tempo, a energia psíquica de Pat passa a se dirigir para esse novo projeto de vida. Então, começa a tomar o remédio, a ser pontual nos ensaios, a não falar tantas bobagens ou magoar quem está próximo. Dedica-se ao tratamento medicamentoso e psíquico, que ele passa a frequentar e falar com mais desenvoltura. A energia psíquica passa a ser canalizada para um projeto, para uma pessoa. Segundo Lacan, isso ajuda a estabilizar o sujeito.

Tiffany, além de ter de insistir e manobrar Pat, também precisa administrar a família dele, e, na cena em que isso acontece, é hilário. Toda a família, apaixonada por  futebol americano, se reúne, bebe e torce junto. Tiffany percebe que o pai ‘puxa’ o filho para ficar perto de si não o liberando para os ensaios. Ela, perseverante, estuda e raciocina a melhor forma de ganhar a família, e portanto, ficar com Pat por mais tempo. Então, saca do bolso uma frase, mais ou menos assim para o pai: Você nunca reparou que seu time vai muito melhor quando seu filho está comigo? E elenca os jogos e suas respectivas pontuações. Nesse momento, ela ganha toda a família!

Lacan trabalha bastante, em seus últimos ensinos, a questão dos Nomes do Pai. É um termo para falar sobre as versões em que os pais se manifestam, as leis que os pais apresentam ao filho e o quanto isso afeta seu aparelho psíquico. O sujeito lê e compreende essa lei afetando sua vida. Após alguns anos de frustrações e internação, Pat estava fazendo investimentos psíquicos em projetos que o estavam agradando. Ele canalizou sua pulsão num viés que o levou a querer investir na vida. Com a autorização do pai, com uma lei paterna, com a aprovação da família, o filho pode deslanchar ainda mais. É bem interessante como o filme mostra essa virada de posição. Essa guinada. De uma pessoa perdida e desgovernada psiquicamente, ela própria, por leis internas de seu desejo e com a participação da família e da amiga, pode fazer uma guinada em sua vida. De um sujeito fora da lei, off Broadway, ele passou a se inserir em seu meio, via sua própria versão de inserção. Vale a pena ver como ele fez isso e como todos se posicionaram para tal.  

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Dave – presidente por um dia




Por: Fabiana Ratti, psicanalista 

Dave - Presidente por um dia (1993) é daqueles filmes que gostaríamos que fosse realidade. O roteiro é bem original, apesar de não haver muita verossimilhança, é isso que deixa o filme mais divertido. Dave (Kevin Kline) é um cidadão animado que tem uma agência de empregos nos Estados Unidos e adora ajudar os amigos. Leva uma vida pacata sem grandes aventuras financeiras ou afetivas. Um dia, o serviço secreto o procura, pois ele é um sósia perfeito do Presidente dos EUA - Bill Mitchell (Kevin Kline). O presidente irá para uma reunião íntima com a secretária e precisa de um sósia para aparecer em um evento, Dave é convocado.

Dave é orientado a seguir o protocolo do presidente, acha tudo aquilo muito estranho, mas lhe é imposta a tarefa. Ele a executa com alegria e despojamento. Diverte-se por estar em um lugar inusitado, com tantos requintes, diferente de seu mundo. Porém, o script não sai conforme o esperado. O presidente passa mal em seu encontro com a secretária e precisa ser internado. Ao invés de chamarem o vice-presidente, Dave assume o cargo sem que a população saiba, por artimanha dos homens de ‘confiança’ do presidente. 

Bill, o presidente, fica internado em uma ala escondido do público e da própria Casa Branca. Ou seja, o roteiro um pouco a ser questionado, porém, a partir daí, Dave assume e o filme deslancha. A princípio, toma a atitude passiva que havia assumido no começo e é comandado pelos homens de confiança do governo, com o tempo, Dave vai se dando conta da sua responsabilidade, do absurdo da situação e encarna realmente um presidente, um presidente cidadão. Que não precisa fazer conchavos, que não tem nada a perder, que pode falar e fazer o que pensa e realiza o que muitos cidadãos desejam – um governo mais justo e honesto.

Dave podia estar no Brasil. Em pleno mês de manifestações exaustivas em que o povo pede mais justiça e reorganização do investimento em setores como saúde, educação e transporte, ele podia fazer uma aparição por aqui. Entre algumas manobras que ele consegue fazer, em uma simples reunião: enxuga o orçamento de propaganda do governo, pára de pagar empreiteiras que não estão fazendo nada e reinveste o dinheiro em áreas que são realmente necessárias. Uma reunião que todo o povo brasileiro espera que um dia aconteça!

Dave - Presidente por um dia é uma filme divertido. Aparecem alguns personagens em suas próprias funções, como Arnold Schwarznegger; tem um pouco de romance; mas, sobretudo, mostra que seria possível. Seria possível um governo mais honesto que priorizasse a população em detrimento de narcisismos pessoais e egóicos. É um filme catártico. Dave fala e faz o que muitos de nós gostaríamos de ouvir e perceber os resultados na prática. Vale a pena assistir a esse filme singelo.

terça-feira, 11 de junho de 2013

O que significa civilização?


 
Significa uma sociedade baseada na opinião dos civis. Significa que a violência, o governo de guerreiros e líderes despóticos, as situações de campos de concentração e guerra, de baderna e tirania, dão lugar a parlamentos, onde são criadas as leis, e a cortes de justiça independentes, onde essas leis são mantidas durante longos períodos. Isso é civilização – e em seu solo crescem continuamente a liberdade, o conforto e a cultura. Quando a civilização reina em um país, uma vida mais ampla e menos penosa é concedida às massas. As tradições do passado são valorizadas e a herança deixada a nós por homens sábios ou valentes se torna um estado rico a ser desfrutado e usado por todos. O princípio central da Civilização é a subordinação da classe dominante aos costumes do povo e à sua vontade, tal como expressos na Constituição (...)

(Winston Churchill, Civilization, 1938.)

Onde está a civilização? No divã estão aparecendo muitos casos de roubos, assaltos à mão armada, latrocínio, sequestros, arrastões, balas perdidas e agora até pessoas incendiadas... Desde presidente, governo até a prefeitura: onde estão os governantes? Pensando na reeleição? Em como assaltar mais e mais os cofres públicos? Onde estão os representantes do povo que foram eleitos para cuidar e gerenciar uma sociedade em prol do cidadão? Há duas décadas que nosso governador está no poder. E o que tem feito pelo Estado? Pela educação? Pela saúde? Pela segurança? O Palácio do governador fica instalado num dos bairros mais violentos de São Paulo. Cada político deve passar com seu carro blindado, ‘protegido’ da barbárie instalada. O cidadão comum, que paga seus impostos, fica exposto ao vandalismo de uma sociedade anêmica. Tiraram tudo das pessoas. O direito a estudo, à saúde, a lazer, a transporte, a uma vida digna, por mais que a constituição dê esses direitos ao cidadão, na prática, não é isso o que temos.

Para Freud, o ser humano é um bicho, como qualquer outro. Quer comer, dormir, fazer suas necessidades biológicas e sexuais. Quer um território que seja seu e para isso luta com todas as forças por sobrevivência, usando até de violência e agressividade. É o lado racional, a linguagem, as regras e leis que tornam o ser humano capazes de viverem numa sociedade mais complexa, com direitos e deveres. Deixando de ser um bicho para ser um cidadão civilizado.

Como as leis nesse país não estão servindo, não são igualitárias a todos os homens, as pessoas estão ficando raquíticas intelectual e culturalmente. Dessa forma, estamos deixando de fazer parte de um mundo civilizado no qual a política, a ética e as leis são soberanas e estamos voltando às guerras de trincheira, caminhando para um mundo da barbárie, da terra de ninguém... Deixando o medo e a insegurança dominarem a população.

Quando os políticos (de todos os partidos) vão abrir mão da ganância, do egocentrismo, de seus narcisismos pessoais e contribuir para uma sociedade mais justa, um povo mais nutrido física e intelectualmente e uma nação que segue leis? Quando a sociedade e o bem de todos ficarão acima de vaidades pessoais? Quando deixarão de ser bichos selvagens e poderemos ter uma sociedade digna e civilizada? 
    
Por: Fabiana Ratti, psicanalista

sábado, 18 de maio de 2013

Ruby Sparks – A namorada perfeita



Por: Fabiana Ratti, psicanalista 




Ruby Sparks – A namorada perfeita é uma produção americana de 2012 dos mesmos diretores de A pequena miss sunshine, Jonathan Dayton e Valerie Faris. É um filme bem mais simples e pode passar por uma usual comédia romântica. Mas é bem interessante do ponto de vista da psicanálise.

Calvin (Paul Dano) é um jovem romancista que já teve alguns sucessos e, como todo sucesso do século XXI, não foi pouco. Nessa era em que estamos, ou ninguém lê o livro, fica por meses nas prateleiras, ou vira febre, comoção internacional com noites de autógrafos e desmaio do público. Calvin era desses que virou notoriedade mas que no momento está sem inspiração para uma ideia interessante. Outra questão de Calvin é que tem uma vida afetiva um pouco parada. Parece ser bastante sensível e exigente, não acompanhando a agilidade da vida sexual desse nosso século.

Então, imbuído de muita concentração cria uma personagem nova, Ruby. O inusitado do filme é que ela ganha vida e aparece em sua casa, age como se fosse sua namorada, conhece sua rotina e as pessoas a seu redor. Por um tempo, Calvin pensa que está tendo um surto, desconectado da realidade e vendo coisas, mas depois, percebe que Ruby é bastante real, interage com as pessoas e participa ativamente de sua vida.       

Fora as bizarrices, com cenas e falas inusitadas, pois a situação é bem peculiar, o que tem de interessante no filme é que Calvin, vendo que sua namorada é uma personagem criada por ele, começa, através da escrita, a manipular suas atitudes, sua fala, seu temperamento. Ruby se torna a namorada perfeita! Como analista, sinto que esse é um sonho de quase todo ser humano. Imagine poder manipular a pessoa, mudar seu humor, fazer com que ela goste de seus programas, respeite seu ritmo incondicionalmente!?! Imagine poder unir em uma só pessoa todas as características boas, todas as qualidades e não precisar dar a contrapartida? Não ter risco de perdê-la?

Ou seja, Calvin constrói um ser que tende à plenitude. Um ser que corresponde a suas expectativas, que não pede nada em troca e que está pronto para tudo a qualquer momento. Quantas vezes não desejamos essa posição de uma pessoa!? Porém, o filme mostra o outro lado da questão. Calvin começa a se sentir sozinho, começa a ver que tem ao lado uma pessoa que não pensa por si, que não age e que não tem seus próprios interesses, e quanto isso é chato!

Ter um relacionamento inclui a ‘incompletude’. Inclui defeitos, temperamentos e ações não tão esperados, inclui dificuldades e obstáculos que os dois ultrapassem juntos. O relacionamento afetivo é uma via de dupla mão, e pode ser bem chato se não for assim... é isso que o filme mostra com alegria e bom humor! 

quinta-feira, 11 de abril de 2013

A pequena Miss Sunshine e Intocáveis




A Pequena Miss Sunshine (2006) e  Intocáveis (2011) são dois filmes bem diferentes que têm um ponto em que são muito semelhantes. Com ótimas tiradas, inteligência e emoção, esses filmes conseguem falar de assuntos sérios e relevantes para nossa sociedade atual, com uma enorme capacidade de fazer o público gargalhar.

A pequena Miss Sunshine relata a história de uma clássica família dos Estados Unidos. A mãe (Toni Collette) que tenta dar conta dos cuidados com a casa, o filho Dwayne (Paulo Dano) que não se expressa por um voto de silêncio por causa de frustrações. O avô (Alan Arkin) que foi expulso da casa de repouso por uso de drogas. O tio gay Frank (Steve Carell), que foi morar com a família porque tentou o suicídio. O pai Richard (Greg Kinnear)  é a personificação do espírito americano que deseja vencer só com pensamentos e palavras positivas. Ele vende livros de auto-ajuda e o filme mostra a disparidade entre a imagem de ser bem sucedido e as dificuldades para manter e cuidar de uma família, do trabalho e da vida. Ou seja, não bastam as palavras, é preciso esforço, diálogo, união. E isso, o filme mostra com muita simpatia, ao passarem três dias juntos viajando numa Kombi Amarela.  A família decide levar a filha Olive (Abigail Breslin) para um concurso de beleza e assim, viajam do Novo México à Califórnia.   

A pequena Miss Sunshine critica o mundo de aparência que corrói e destrói nossa sociedade atual. Um mundo de barbies, roupas, sapatos e cabelos que tiram a naturalidade, distanciam as pessoas, gera ganância e competitividade gratuita entre as pessoas. Esse mundo pode começar com as crianças e gerar famílias inteiras desarticuladas e distantes. Os diretores conseguiram, de forma maravilhosa, ridicularizar e ironizar tamanho absurdo que acontece em nossa sociedade com muito humanismo e simpatia.

Por outro lado, Intocáveis é um filme francês que relata a dor e a dificuldade de um homem que se tornou tetrapégico e precisa de um acompanhante. Como é possível falar sobre isso de forma hilária? Como o diretor conseguiu? Como ele perdeu o Oscar para aquele terrível “O Artista”? Intocáveis é baseado em fatos verídicos. Philippe (François Cluzet) é um aristocrata e contrata Driss (Omar Sy) para trabalhar. Driss, acostumado com o subúrbio, com a miséria e a simplicidade, fica estarrecido com um novo mundo de riqueza. Mas Driss, não se acanha. Assume a sua personalidade, se coloca, faz seus comentários e não se inibe com suas ignorâncias e pontos de vista. Por outro lado, Driss sabe sorver esse novo mundo. Tem a humildade necessária para aprender e a petulância suficiente para não se acanhar ou se excluir, características muito difíceis, mas necessárias, para quem circula de um mundo ao outro.  Driss conquista os outros funcionários da casa, se posiciona para a filha do patrão, e cria com Philippe uma nova forma dele se autorizar a continuar a viver, apesar das impossibilidades que fazem parte de sua nova vida.   

Rir desopila o fígado. Rir ‘abre o inconsciente’. São dois filmes que merecem a bilheteria e o sucesso que tiveram!

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Bem vindo à vida




Bem vindo à vida é um filme de Alex Kurtzman bastante sensível e inspirador. Um drama que vemos, cada vez mais, nos consultórios dos analistas. Com a morte do pai, Sam (Chris Pane) descobre que seu pai tinha uma outra filha de um outro relacionamento e recebe a incumbência de entregar sua herança a ela, Frankie (Elizabeth Banks).

Uma frase muito usual nos dias de hoje é: “separou da esposa, separou dos filhos”. Essa frase aponta o quanto algumas relações paternas estão ficando defasadas, o quanto as dificuldades nos relacionamentos afetivos homem-mulher afetam as crianças e as famílias como um todo.

Esse filme é especial porque mostra um pai frio e distante, um pai com seus vícios e de uma certa forma, narcisista, pois parecia pensar somente em si. Um pai desses que esquecem e pouco se importam com os filhos. Porém, o filme é surpreendente pois, logo no começo, quando deixa o compromisso de entregar sua herança à outra filha, ele demonstra seu desejo que eles se conheçam, demonstra o desejo de cuidar dessa filha que parecia esquecida.

Nesse movimento, Sam passa por diversos sentimentos. Sente egoísmo, reflete, comove-se, pensa, se interroga. Sam abre uma porta de contato com a mãe (Michelle Pfeiffer) e passa a ter uma relação mais sólida com a namorada (Olívia Wilde). O mais interessante é que começamos a pensar o quanto esse pai sofreu, o quanto ele os amava, o quanto era difícil para ele, mas o quanto ele era impotente. Não soube lutar para estar ao lado dos filhos com mais dignidade e amor. Muitas vezes, realmente não é fácil, muitas coisas estão em jogo. Mas é triste ver que, ao longo da vida, ele economizou amor... deixou de expressar seu amor para filhos que tanto precisavam.

Como psicanalista, me interrogo o quanto isso não é mais freqüente do que supomos. Por traz do descaso e do desprezo de um pai (ou mesmo de uma mãe), pode haver muito amor mal administrado. Pode haver medo e insegurança que impossibilitaram, no curso da vida, a demonstração desse amor. Uma pena! O filme mostra, com delicadeza, o custo pago, por todos os membros da família, essa ‘economia’ de amor.  

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Morango e Chocolate - Habana Blues



Um dia desses assisti ao premiado filme Morango com Chocolate, dirigido em 1994 por Tomás Gutiérres Aléa e Juan Carlos Tobío, baseado na obra de Senel Paz e, realmente, esse merece os prêmios que recebeu! O filme é sensível e engraçado, ao mesmo tempo que faz críticas mordazes à política cubana, discute relações afetivas e preconceito sexual. É um daqueles filmes que se você não viu, corra para ver. Como faz falta filmes assim na filmografia mundial!O filme é leve, ao mesmo tempo em que discute pontos sérios, detalhes, sutilezas que fazem um grande diferencial na vida de uma nação.

A história se passa em Havana em 1979. David, um estudante comunista e heterossexual, é paquerado por Diego, um artista gay descontente com o regime. Os dois estão na praça a tomar sorvete. Qual sabor? O que te apetece? Quais sabores combinam? Quais se misturam? Essa é a discussão ao longo do filme. Gosto por leituras, visões de mundo, iniciativas, sexualidade, índoles, amizades. São diálogos inteligentes, perspicazes, que tocam nossa emoção, tanto pelas injustiças culturais e sociais como pela forma divertida e escrachada que os assuntos são discutidos e encenados. Falta na filmografia atual os diretores respeitarem a inteligência do público tanto como os diretores cubanos tiveram o cuidado.

Embargada pela discussão Cubana, na seqüência, assisti ao Habana Blues de 2005 dirigido por Benito Zambrano. Também um filme excelente que, através das músicas cubanas e da bela fotografia, conseguiu passar um retrato fiel do cotidiano de Havana. As dificuldades do regime, a falta de comida, a comunicação restrita e principalmente, o quanto os músicos, fechados na ilha, ficam na mão de olheiros, aguardando as poucas oportunidades de produtores que aparecem por lá com capital estrangeiro e que os músicos, pouco podem escolher ou pedir para valorizar seus trabalhos, devido à dificuldade de movimentação e opção que a ilha permite.     

O filme narra a história de 2 grandes amigos músicos Ruy e Tito. Ruy está num casamento em crise com dois filhos, Tito, que mora com a avó, é ajudado por ela, e a ajuda, pois é o parente mais próximo. Os dois amigos, ‘unha e carne’, fazem parte de uma mesma banda e recebem uma produtora espanhola que está à procura de músicos latinos para uma gravadora. O filme se passa com muita música, latinidade, sexo, alegria, festa e perseverança para enfrentar os obstáculos, nesse sentido, de uma forma bem brasileira.

A questão muito marcante nos dois filmes, na minha visão de psicanalista, é o quanto o comunismo restringe os sonhos. Freud (1932, vol. XXII, p.205), em uma carta endereçada a Einstein diz ´a garantia de satisfação de todas as necessidades materiais e o estabelecimento da igualdade em outros aspectos, entre todos os membros da comunidade. Isto, na minha opinião, é uma ilusão!´ Não que Freud fosse favorável ao capitalismo, principalmente o capitalismo selvagem, as diferenças sociais, econômicas e culturais... lógico que não. Mas, Freud está colocando que o suprimento das necessidades materiais e o estabelecimento da igualdade, não abarcam os sonhos dos indivíduos.

Uma questão muito séria apontada em Habana Blues foi: se o cantor faz a escolha de ir para a Espanha e tentar a vida de músico, mesmo aceitando as péssimas condições que o contrato impõe, se não der certo, ele pode nunca mais voltar... Nunca mais ver sua família. Nunca mais trabalhar em sua terra natal. Precisa viver como um mendigo em terra estrangeira. A Esposa de Ruy, um outro forte exemplo, ao perceber a necessidade da separação, embrenha-se no projeto de pegar um barquinho e ir morar em Miami, com grande chance de naufragar no mar, sem a menor segurança e quase que condenada a ter um subemprego no exterior, sem nunca mais poder retornar a seu país. Ou seja, o cidadão cubano não tem o direito de ir e vir, não há democracia, muito menos a globalização, restringindo as escolhas de vida de seus cidadãos.

Um outro ponto que Morango e Chocolate discute com ironia apontando essa questão, era o fato de David ser estudante de letras e não ter acesso a nenhum escritor mundial. Não conhecia poesias, romances e escritores internacionais, ou seja, uma restrição muito grande em relação a seu sonho de fazer literatura. Diego, sendo artista, queria propor novas formas de fazer exposição, levar a cultura ao povo e o regime, o tempo todo, cortava suas asas.

Do ponto de vista psicanalítico, para que o ser humano viva, além de arroz e feijão, é preciso que ele tenha asas... sonhe e batalhe por seu vôo, se não, deixa de ser vida!  

Uma homenagem à blogueira cubana que estava em nosso país nesse mês.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Babel e 360



Por: Fabiana Ratti, psicanalista

Babel, filme de 2006, do diretor Alejandro González Iñárritu, é uma montagem de quatro histórias que acontecem paralelas e simultâneas. O tempo vai e volta na narrativa num curto período, os espaços físicos são diferentes e apontam um mundo globalizado onde as culturas se comunicam.

Existem alguns filmes dessa natureza que nos fazem pensar o quanto um ato no Marrocos pode afetar alguém no México, ou no Japão, ou nos EUA. Ou seja, estamos, de alguma forma entrelaçados e os atos têm efeitos e repercussões que vão para além do alcance de nossos olhos.

Um outro filme recente dessa natureza é o 360, de 2012, do premiado diretor brasileiro Fernando Meirelles. 360 roda o mundo com algumas histórias sobre a vida do ser humano comum e aponta as conseqüências que um ato pode vir a ter.

Assisti aos dois filmes num espaço muito curto de tempo, e o que me saltou aos olhos em relação aos dois foi o quanto eles mostram a irresponsabilidade e a displicência com que os seres humanos agem. Isso aponta a máxima de Freud, quando este diz que os seres humanos são dominados pelo aparelho emocional e não pelo racional. O inconsciente se impõe, e o indivíduo pode abrir mão, em um ato, de sua integridade física e/ou psíquica.

Em Babel, podemos dizer que a ligação entre as histórias se dá por uma arma. Até quando vamos deixar o comércio de armas correr tão solto? Então, na primeira história vemos um pai acirrar a competição entre os filhos e, sem uma orientação maior, irresponsavelmente, deixa-os com uma arma para irem cuidar das cabras. Logicamente, temos de pensar, qual seria a cultura e grau de instrução que aquele pai teria em pleno deserto do Marrocos? Não sabemos. Podemos entrar numa discussão mais sócio-política, mas, não o faremos aqui, aqui fica a discussão psíquica de que o pai agiu por impulso, não raciocinou os efeitos e conseqüências, provavelmente, a primeira vez que ele ganhou uma arma, também tenha sido dessa maneira. Assim, a irresponsabilidade vai sendo transmitida. Pode nunca ter acontecido nada de grave, mas um dia acontece. (como na tragédia que assolou Santa Maria, no RS, nessa semana, na boate Kiss matando mais de 230 pessoas). No filme aconteceu. Dessa maneira, continua o filme apontando uma seqüência de atos impensados, alguns que não levam a nada e outros que não saem tão ilesos, o que poderia causar sérios danos a todos em volta. O filme é interessante e nos deixa presos na ação, o que peca um pouco é a questão de que todos são incompetentes e dominados pelo inconsciente, menos os americanos, o que não é bem assim. Se relevarmos essa parte, o filme vale a pena! 

360 é mais romanceado. É menos intenso e portanto, ficamos menos aflitos ao assistir. Porém, mostra esse mesmo efeito. Uma seqüência de atos que, sendo impensados, pode destruir uma relação amorosa, pode fazer uma pessoa ter de mudar de país, de perspectiva de vida, pode fazer um pai ficar sem uma filha. Pode nada acontecer, mas Meirelles aponta o quanto podemos passar perto do perigo, sem o saber. Do meu ponto de vista de analista, se houver mais prudência e ‘preguiça de pensamento’, podemos não correr riscos tão altos, diminuindo os ‘acidentes’ e tragédias que acontecem na vida.

Fernando Meirelles também aponta, com categoria, que todo ser humano tem a capacidade de se esforçar e não cair na tentação. Ou seja, é possível um diálogo entre o racional e o emocional, não é preciso um dominar e se sobressair a ponto de perdermos a vida. Sendo assim, por que o ser humano se arrisca tanto?

sábado, 2 de fevereiro de 2013

O MESTRE




Por: Marcio Botelho, historiador
 
- Direção: Paul Thomas
- Estados Unidos
- 2012

O novo filme do diretor Paul Thomas Anderson se colocou dentro de um campo bastante polêmico: o debate a cerca da cientologia, seus métodos e objetivos. Apesar do tema, capaz de gerar múltiplas contradições, o filme não consegue animar durante as suas quase duas horas e trinta minutos de duração.

O espectador acompanha a trajetória de Freddie Quell (Joaquin Phoenix), um ex-combatente da Segunda Guerra e marinheiro, e seus problemas de inadequação aos tempos de paz: o gosto por álcool, o temperamento agressivo e a dificuldade que ele sente para expressar suas emoções. A atuação de Phoenix é consistente ao ponto de fazer com que possamos sentir antipatia pelo personagem e suas escolhas equivocadas.

O acaso une este homem errante a Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman, mais conhecido pelo elogiado “Sinédoque Nova York”), escritor e líder da organização religiosa “A causa”. Dodd e Quell constroem um vínculo profundo, levando o carismático líder da seita a introduzir o marujo em suas estranhas crenças envolvendo reencarnações, entidades extraterrestres e envolvimento com milionários em busca de respostas.

O diretor pecou ao não se posicionar sobre o assunto durante o filme: ao invés de se jogar na polêmica envolvendo os defensores e opositores da cientologia, Anderson escolheu construir um filme sobre a amizade entre um homem comum e um sujeito com ideias, no mínimo, estranhas ao seu tempo. O resultado é um dramalhão que se arrasta perante o espectador ao mesmo tempo em que se distancia do debate e opta pela neutralidade inócua.

Obs.: a atuação de Amy Adams, no papel da manipuladora esposa de Dodd, Peggy, é no mínimo deprimente. Inicialmente ela parece ser uma mulher forte e decidida, mas ao fim os seus jogos de manipulação se tornam parte de um clichê, de certa forma machista, envolvendo as esposas de “grandes lideres”.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

As aventuras de Pi


Por Laís Olivato, historiadora


Estreado em 2011 e dirigido por Ang Lee, As aventuras de Pi talvez seja um dos melhores filmes do ano. Protagonizado por Pi Pastel (Suraj Sharma), a aventura trata novamente sobre as diferentes formas de se contar a mesma história.

Nascido na Índia, num zoológico administrado por seu pai, Pi inicia o desafio de narrar sua saga pessoal a um escritor em crise no Canadá. O dilema imposto ao curioso personagem é a tarefa de fazer outras pessoas acreditarem em Deus.

Dentre tantos pontos pertinentes da primeira narrativa feita por Pi de sua infância e adolescência na Índia destaco a curiosidade do mesmo pelas mais diversas formas de religião. Era um garoto que transitava tranquilamente entre o budismo, o islamismo e o cristianismo a fim de intensificar a busca por respostas acerca do sentido de sua própria existência. Contudo, ao se deparar com um imenso tigre de bengala, chamado Richard Parker, no zoológico de seu pai, suas crenças ficaram abaladas. Como poderia uma criatura tão linda ser também um dos seres mais cruéis e perigosos que já havia conhecido?

Por problemas com impostos, o pai de Pi resolve transferir o zoológico para a América do Norte numa viagem de Navio, tal qual a feita por Cristovão Colombo. Porém, logo dos primeiros dias do trajeto, o navio afunda e Pi foi o único sobrevivente junto a Richard Parker do acidente.

Sendo obrigado a dividir um mesmo bote com um predador de grande porte, Pi vê sua vida sendo desafiada a cada instante da jornada de 227 dias, no Pacífico. É aqui que Ang Lee nos surpreende. Para quem tiver a oportunidade, o filme está disponível para ser assistido em alta resolução e em 3D, nos cinemas, a fim de destacar todas as cenas incríveis da fantasia criada nessa viagem.

Pensar que o medo constante de Richard Parker manteve o protagonista vivo é o mais interessante dessa história. Após perder todos seus entes queridos e sua terra natal, o único sentido da vida para Pi era garantir um bom convívio com o seu pior pesadelo. No silêncio do oceano, era com o tigre de bengala (que na atualidade é uma espécie ameaçada em extinção) que o garoto discutia, pensava, sentia, chorava. Era esse animal perverso o sintetizador de seus sentimentos mais profundos.

Ao ser resgatado e questionado sobre a veracidade de sua história pelos jornais da época, Pi contou outra versão de sua história. Menos ficcional e talvez tão amedrontadora quanto a do tigre, mas com certeza sem nenhuma magia.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O homem urso

Resenha Crítica sobre o filme O homem urso de Werner Herzog

Luiza Olivato, estudante de letras

Para o estudo de um objeto, consideram-se duas opções metodológicas. A primeira é abrangê-lo em toda sua forma e conteúdo, observando que a estrutura do objeto é fixa e segue determinados padrões. A segunda consiste em admiti-lo como uma estrutura multifacetada em que o estudo de cada uma de suas partes, ora distanciado, ora aproximado, pode revelar minuciosamente as características, que não são previamente delimitadas, do objeto como um todo.

Walter Benjamin (1993) aplica tal concepção a parâmetros de análise textual e mostra que a primeira forma de estudo de um objeto, citada acima, pode ser encaixada nos moldes do texto científico, ao passo que a segunda ao texto ensaístico. Atentando-se para as duas diferenças, é possível aplicá-las para a interpretação de um filme, como no caso de O homem urso de Werner Herzog.

O homem urso é um documentário sobre Thimoty Treadwell, um estudioso que dedicou muitos anos de sua vida em defesa aos ursos pardos do Alasca por meio do contato direto com o habitat desses animais e filmagens posteriormente divulgadas sobre sua pesquisa. Para contar a história de Treadwell, Herzog utilizou de vários depoimentos de indivíduos que pertenciam aos círculos de relação do ambientalista.  Ao empregar diferentes perspectivas sobre o trabalho de Treadwell, ao mesmo tempo em que esses comentários teciam a biografia do pesquisador, pode-se constatar que Herzog analisava seu objeto de estudo de forma a considerá-lo de forma multifacetada, em que cada depoimento compõe um fragmento deste objeto que, ao final da apresentação de cada uma dessas partes, é possível que o telespectador componha a história de Thimoty Treadwell e tenha seu próprio ponto de vista sobre a trajetória do ambientalista. Sendo assim, Werner Herzog trabalha seu filme como se fosse um ensaio, segundo os conceitos de Walter Benjamin.

Entretanto, se observadas as relações traçadas entre Thimoty Treadwell e seu objeto de análise, os ursos pardos, percebe-se um movimento de expressão diferente do tratado por Herzog. Nas filmagens de Treadwell, nota-se que o ambientalista considera que, para salvar os ursos dos caçadores, ele tem a missão de se aproximar dos animais e mostrar ao público seus modos de vida, no entanto, nesse contato, Treadwell imprime características humanas aos animais e não os considera como seres que possuem suas determinadas singularidades, como se os ursos fossem passíveis de uma “humanização”. Portanto, ao passo que o cineasta lida com seu objeto de estudo de forma ensaística, o ambientalista determina seu objeto sobre uma única perspectiva, num estilo próximo ao texto científico.

Dentre toda cadeia de depoimentos familiares estabelecida em O homem urso, Werner Herzog exprime seu ponto de vista em determinado momento: “às vezes, Treadwell ficava cara a cara com a dura realidade da natureza selvagem. Isso não combinava com sua visão sentimental de que tudo ali era bom e o universo vivia em equilíbrio e harmonia.” (1h07). O cineasta considera que Treadwell possui uma visão distorcida sobre a natureza: a de que ela é harmônica, quando, na realidade e em sua opinião, ela é composta pelo oposto, visto que há animais que matam uns aos outros sendo pertencentes da mesma espécie ou não.

Em oposição tanto a opinião de Herzog, quanto de Treadwell, primeiramente, encaixa-se o argumento utilizado em depoimento de Sven Haakanson, curador do museu Alutiiq de Kodiak, que possui artigos sobre as comunidades que vivem no Alasca.  Nele, Haakanson possui a posição de absoluto contato entre Treadwell e os ursos pardos como falta de respeito à natureza, pois corresponde a uma invasão do território dos ursos e, ao ter a constante presença humana, corre-se o risco de que os ursos deixem de considerar os seres humanos como uma ameaça, o que os prejudicaria ainda mais.

Aliado a posição de Haakanson e contrariando a visão de Herzog, pode-se observar que a natureza dos animais compõe um ambiente que não é caótico, mas sim harmônico dentro das perspectivas dos animais e do próprio sistema de equilíbrio da natureza. O termo “harmônico”, para os seres humanos, designa uma visão utópica de um lugar onde não há mortes e existe igualdade de condições e justiça. Se tal definição não se aplica aos seres humanos, julgá-la em um contexto de outros seres vivos que se organizam em sociedade de forma diferente da humana, torna-se ainda mais equivocada. Portanto, deve-se procurar entender a natureza sob uma ótica dos seres vivos estudados e não buscar encaixá-los em parâmetros determinados pela sociedade humana. 

Referência Bibliográfica: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993